IBRAJU - Instituto Brasileiro de Aperfeiçoamento Jurídico

Alimentos, SISBAJUD e os poderes do juiz na “efetividade” da execução: breve análise à luz da proteção integral do art. 227 da Constituição Federal

9 de out. 2020 Vagner Franco

Uma decisão favorável ao cliente, mas sem cumprimento efetivo, resulta na insatisfação do art. 4º do Código de Processo Civil. Nada mais frustrante para advogados e advogadas, que investem trabalho e dedicação, do que uma execução sem efetividade que se arrasta por anos, especialmente nas execuções de alimentos ou cumprimentos de sentenças.

Com base nisso, o CPC de 2015 tentou romper com essa ”barreira” que é a dificuldade de se fazer cumprir a decisão que, por vezes, resume-se em pura resistência ou ocultação de patrimônio pelo próprio devedor.

Para tentar superar isso, o art. 139, IV confere ao juiz o poder de determinar “todas as medidas” que se mostrem necessárias ao cumprimento da ordem judicial por meio das “medidas atípicas” na execução (um aumento no poder já conferido pelo § 5º do artigo 461, do CPC/1973).

Ocorre que, os advogados, com base nessa generalidade de possibilidades, passaram a requerer medidas como: suspensão da CNH, retenção de passaporte, inscrição em cadastro de negativados (SPC/SERASA), bloqueio de cartão de crédito entre outras; todas como medidas coercitivas no sentido de obrigar o devedor ao cumprimento da obrigação.

CPC e medidas coercitivas

Normalmente, em cada caso, essas medidas são requeridas após esgotadas as vias ordinárias sem êxito na obtenção de recursos suficientes ao cumprimento da obrigação (principalmente o BACENJUD), mormente quando pecuniária.

Mas não é só isso: há uma série de outros dispositivos processuais que conferem ao juiz esse mesmo poder geral de efetivação (de decisões). Nesse sentido, o art. 297, quanto ao cumprimento da tutela provisória, diz que pode o juiz adotar “as medidas que considerar” adequadas à efetivação da tutela concedida. Seguem a mesma linha os parágrafos únicos dos artigos 380 e 400; o caput e o § 1º do art. 536, todos do CPC.

Mas, como sabemos, a execução continua um tormento na vida do cliente e, mais ainda, do advogado, que por vezes depende (apenas) da execução como fonte de honorários (infelizmente).

Análise constitucional

Ao escrever sobre o tema, do ponto de vista interpretativo jurídico-constitucional, Lenio Streck refere que:

“Não há dúvidas de que nossa execução sempre foi o “calcanhar de Aquiles” do sistema processual, pela praxe do “ganhou (no processo de conhecimento) mas não levou” (na fase de cumprimento ou execução). Todavia, isso não permite uma interpretação que busque, sem maior reflexão, resultados desconectados das balizas constitucionais. Ou seja: partimos da tese – obedecendo a coerência e a integridade do artigo 926 – de que o CPC jamais daria “carta branca” para o juiz determinar quaisquer medidas aptas para que a obrigação fosse cumprida. E nem poderia dar!” [1]

Me coloco ao lado do eminente jurista para crer que medidas “gerais” são sempre um problema no contexto, também “geral”, da proteção constitucional dos direitos e liberdades individuais. Mas, à luz do art. 227/CF, tenho ponderações quando o conflito se der no âmbito do direito da criança e do adolescente (por experiência própria de vida, quando criança, e também na adolescência).

Se há reconhecimento de limites aos direitos fundamentais (liberdade de expressão, liberdade de locomoção, etc.), é o caso concreto que nos dirá que “certos” sujeitos de direitos (criança especialmente) merecem maior atenção dos envolvidos nos processos ( Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.), com maior atribuição de responsabilidades na pessoa do devedor (temos que encarar isso! Ignorar, simplesmente, não dá).

O novo SISBAJUD

É nesse cenário de incertezas, ineficiência e frustrações que surge o SISBAJUD, o novo sistema que objetiva efetivar o cumprimento das obrigações na execução. Criado em parceria do CNJ, PGFN e Banco Central, o sistema vem para substituir o BACENJUD ativo desde os anos 2000.

Dados em notícias da internet informaram que só em 2019 o BACENJUD efetivou bloqueio de R$ 55 bilhões em ativos movimentados via sistema bancário, dos quais R$ 31 bilhões foram convertidos em depósitos judiciais para pagamento de credores (em geral).

Segundo Renata Santana Fernanda de Paula, procuradora da Fazenda Nacional da Coordenação-Geral de Estratégias de Recuperação de Créditos (CGR), envolvida com o desenvolvimento do SISBAJUD, o órgão acrescentou a visão do credor à ferramenta.

“Considerando que se trata do sistema utilizado pelo Judiciário para o cumprimento de todas as ordens de bloqueio de ativos financeiros, a PGFN assume um enorme protagonismo, ocupando um papel de referência na deliberação das regras de negócio que determinarão as novas funcionalidades”. [2]

O sistema foi lançado em 25 de agosto de 2020 e promete maior efetividade na localização e bloqueio de ativos para cumprimento de decisões judiciais que envolvam pagamento de dinheiro aos credores na execução.

Por sua vez, a jurisprudência, no que se refere às medidas do inciso IV do art. 139 do CPC, tem entendido pela prevalência dos direitos fundamentais, trazendo como razão de decidir o fato de que, ainda que o CPC confira tal poder ao juiz, este deve agir de acordo com a proporcionalidade e razoabilidade.

Exemplo de jurisprudência

No ponto, há decisões, por exemplo, de que a suspensão da CNH, como medida atípica, não se presta a finalidade de satisfação de crédito pecuniário, porque aplica ao devedor apenas uma sanção, não havendo obrigação direta e incisiva o suficiente para conferir efetivação do pagamento ao credor. A jurisprudência do TJMG é pacífica nesse sentido.

AI - 10000200719284001/MG: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE EXECUÇÃO - SUSPENSÃO DA CNH - ART. 139, IV, CPC- MEDIDA COERCITIVA ATÍPICA - INADEQUAÇÃO COM A FINALIDADE PRETENDIDA - A regra de atipicidade enunciada pelo artigo 139, IV, CPC não se aplica às medidas sancionatórias, que não prescindem de previsão legal específica - A suspensão da CNH não cumpre a finalidade de induzir o devedor a quitar o débito em atraso, prestando-se apenas a sancioná-lo - Não havendo coerência entre a restrição do direito e a finalidade buscada, não deve ser aplicada a medida executiva atípica. (Grifei)

AI - 10000190735712003/MG: AGRAVO DE INSTRUMENTO - CUMPRIMENTO DE SENTENÇA - MEDIDAS COERCITIVAS - ART. 139, IV, CPC- SUSPENSÃO DE CNH E DOS CARTÕES DE CRÉDITO - IMPOSSIBILIDADE. Não havendo uma relação direta entre as medidas pleiteadas pelos agravantes e o cumprimento da obrigação de pagar, deve-se reconhecer a sua ineficácia ao fim pretendido pela Execução. As medidas pleiteadas pelos exequentes de suspensão da CNH e dos cartões de crédito dos executados não se mostram úteis ao fim que se pretendem, na medida em que apenas restringem os direitos individuais da parte executada sem assegurar o pagamento do débito. (Grifei)

AI - 10480050745417001/MG: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL - MEDIDAS COERCITIVAS - ART. 139, IV, CPC- SUSPENSÃO DE CNH - IMPOSSIBILIDADE - A medida pleiteada pela exequente não é útil, bem como apenas restringe direitos individuais da parte executada. Não havendo relação direta entre o cumprimento da obrigação de pagar e a adoção da medida pretendida, torna-se, portanto, ineficaz o fim pretendido pela execução. (Grifei)

Três perguntas:

1) A prisão civil, admitida quando inedimplente o devedor de alimentos, tem alguma relação direta com o cumprimento da obrigação nos mesmos moldes apresentados nas decisões acima?

2) A liberdade de locomoção, no caso, é menos importante que a questão patrimonial ou documental do devedor?

3) As medidas atípicas podem ser usadas como alternativas à prisão civil no âmbito da execução de alimentos?

Quanto ao passaporte, este é requisito para saída ou travessia de fronteiras nacionais (servindo também como documento de identificação), mostrando-se como documento que deve, mundialmente, adotar os mesmos elementos de identificação.

Logo, a simples retenção do passaporte não obsta o direito de ir e vir de ninguém, ainda mais considerando que há diversos países que exigem apenas simples documento de identificação (RG).

Além disso, temos o fato de que o devedor, ao usar o passaporte para deixar o país, o faz com gastos elevados, o que não justificaria sua resistência em cumprir a obrigação referente à dívida exequenda. Alguns argumentos dizem: “ora, não tem dinheiro para pagar a dívida, mas tem para ir ao exterior”.

Parafraseando certo filósofo da política riograndina: E ai? Como o que que fica?

O SISBAJUB vem com uma proposta de dar efetividade as execuções, garantindo ao máximo o pagamento ao credor. Mas isso não deve esvaziar as decisões dos juízes em buscar outras medidas, se estas se mostrarem, no caso concreto, mais adequadas (nos limites constitucionais). Quando o devedor resolve ocultar patrimônio, não há sistema que possa evitar 100% tal conduta.

Nesse aparente conflito de direitos fundamentais, no qual a execução visa, por exemplo, garantir alimentos, qual direito fundamental deve prevalecer? O direito aos alimentos ou ao passaporte? O direito à garantia inegociável do art. 227 da CF/88 ou direito à CNH intocável? (Lógico que não se pode suspender a CNH de um taxista, sob pena de violar também sua fonte de sustento).

Nesses casos específicos, devem prevalecer o artigo 227 da CF/88 combinado com o art. 1º do ECA, nos quais expressamente dispõem sobre a proteção integral da criança e do adolescente, não havendo falar em conflito de direitos fundamentais, eis que estes, em razão da própria condição biológica, são vulneráveis e hipossuficientes.

Conclusão

Só o tempo dirá se o SISBAJU realmente terá a capacidade de dar celeridade aos prazos processuais e efetivar o pagamento de valores aos credores nos autos da execução. O sistema está aí; resta-nos torcer para que ele realmente cumpra a finalidade para o qual foi criado.

Não podemos esquecer, ainda, que a maioria das ações de alimentos que tramitam estão sob a assistência da Defensoria Pública; processos nos quais os assistidos não serão alcançados pelo SISBAJUD, isso porque não existe ou há pouca movimentação de ativos em sistemas bancários.

Em resumo, sem medo das provocações, posso dizer que a “proteção integral” conferida aos menores de 18 anos é, no âmbito processual (execução de alimentos, especificamente), o efeito imediato da “proteção relativa” ao (s) adulto (s) por eles responsáveis.

Como juízes e o SISBAJUD vão contornar essa questão, não sabemos ainda. Aliás, talvez saibamos, mas estamos ampliando as formas de “fingir” efetividade jurisdicional jogando a bola para um sistema de informática e esperando que ele nos dê todas as respostas.

IMAGEM: Reprodução/Google Imagens (Pesquisa em 9 de out. 2020).